Caso Jonatha: mãe critica adiamento de júri e pede condenação de PM
Jovem foi morto na favela de Manguinhos, no Rio, há quase 10 anos
Na primeira vez que a reportagem entrou em contato com a Ana Paula Oliveira, em 1º de fevereiro, havia muita tristeza e frustração. Ela havia sido informada "há pouco" que o julgamento do policial acusado de assassinar o filho Jonatha não aconteceria mais no dia seguinte. A pedido do Ministério Público, foi remarcado para 5 de março. Para quem luta e espera há quase 10 anos por justiça, um mês pode ser uma eternidade.
Dias depois, ela atendeu o telefone com novo ânimo. Algo que aprendeu durante todo esse tempo foi superar obstáculos e buscar forças em situações críticas. O sentimento voltou a ser o de esperança.
Ana Paula tem 47 anos, é nascida e criada na favela de Manguinhos, na Zona Norte do Rio de Janeiro. Avós e pais chegaram lá na década de 1960, depois de serem removidos com outros moradores das favelas do Caju, na Zona Portuária, e da Praia do Pinto, no Leblon, na Zona Sul. Ela é formada em pedagogia, mas hoje dedica-se integralmente a conseguir justiça pelo assassinato do filho e a ajudar outras mães que passam por situações semelhantes.
Na tarde de 14 de maio de 2014, Jonatha voltava da casa da avó, quando cruzou com um tumulto entre policiais e moradores da favela. Um tiro disparado por um agente da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) atingiu as costas do jovem de 19 anos. Ele foi levado para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) e morreu no local. A família prestou queixa na delegacia e começou a pressionar pelo andamento das investigações.
Durante esse longo processo, Ana Paula criou o grupo Mães de Manguinhos, ao lado de Fátima Pinho, que também perdeu o filho assassinado. Elas passaram a acolher outras vítimas e a cobrar respostas das autoridades. No caso de Ana Paula, as investigações indicaram o PM Alessandro Marcelino de Souza como autor do disparo que matou Jonatha, e o julgamento foi finalmente marcado no 3º Tribunal do Júri da Capital.
É por esse momento que Ana Paula tem aguardado há anos e que espera por uma conclusão no dia 5 de março. Para ela, a punição do policial vai servir de referência para todos os que são vítimas e lutam contra a violência e a impunidade de policiais e outros agentes do Estado.
Agência Brasil: Como você recebeu a notícia de que o julgamento havia sido adiado?
Ana Paula Oliveira: “Eu recebi como um balde de água gelada na minha cabeça. Tinha sido uma semana muito intensa, correndo atrás de apoios, várias mães estavam confirmando presença no julgamento. Algumas delas, para chegar ao Tribunal de Justiça do Rio, precisariam fazer um grande deslocamento. O pai do João Pedro, que foi morto pela polícia em São Gonçalo, um dia antes me mandou mensagem confirmando presença. Ou seja, vinha gente de outros municípios e estados. Gente que tinha pedido para trocar o horário de trabalho. Uma mobilização muito forte de apoio.
E eu fiquei muito triste e decepcionada. Um pouco revoltada também, porque eu achei que foi uma falta de respeito e de sensibilidade. Deveriam pensar o que isso significa para uma mãe que vai completar quase 10 anos de muita luta. Não é um mês, nem um ano. Eu não esperei por esse dia sentada, nem de braços cruzados. Corro atrás para que esse dia chegue há muito tempo e abri mão de muita coisa na minha vida. Até mesmo de ter uma carreira profissional e de muitas vezes estar junto com a minha família. Para chegar um dia antes do julgamento e receber essa notícia assim.
Sou a mãe do Jonatha. Tenho muito orgulho de ser a mãe dele. Já caí algumas vezes. A primeira quando meu filho foi assassinado. Eu nem imaginava que ia conseguir levantar. Mas toda vez que me derrubam, eu levanto com mais força. Aumenta a vontade de gritar. Porque eu não estou pedindo. Eu exijo que a justiça seja feita. É o mínimo que podem me dar como resposta. A condenação desse policial significa que ele não vai mais fazer novas vítimas. Se ele for inocentado, ele vai seguir com a certeza de que pode matar e nada vai acontecer.
O Jonatha não volta, mas a gente pode impedir que outras vidas sejam ceifadas. Para mim, é isso que importa, é isso que faz minha vida ter sentido. Eu me agarro nessa certeza de que eu posso junto com tantas outras pessoas – outras mães, organizações, imprensa – trazer algo de bom para a sociedade. Porque deve ser uma luta de todos. A gente vai seguir cumprindo a nossa missão e eu quero acreditar na justiça. Não tem mais como voltar atrás. É só para frente mesmo. A gente quer representar milhares de mães que não conseguem se levantar e ter voz”.
Agência Brasil: Na época do assassinato do Jonatha, os policiais deram diferentes versões e as investigações avançaram com muita lentidão. Como foi lidar com esses obstáculos durante quase uma década?
Ana Paula Oliveira: “Para você ter uma ideia, depois do assassinato, o policial que atirou no Jonatha continuou trabalhando normalmente na UPP de Manguinhos. A Marielle Franco, na época me ajudou, mandou um ofício para o comando geral da UPP pedindo que o policial fosse retirado daqui. Quase um ano depois, quando aconteceu a primeira audiência do caso,eu cheguei a vê-lo lá no Tribunal de Justiça na primeira audiência e, depois disso, eu o vi aqui na UPP de Manguinhos. E na mesma hora eu liguei para Marielle muito nervosa. E eu o vi uma segunda vez, quando estava saindo da escola com a minha filha. Ele passou dentro da viatura. A Marielle mandou um segundo ofício e só assim que ele foi retirado.
Ele me via passar pela rua, porque a base dele ficava entre a minha casa e a da minha mãe, por onde eu passava quase que diariamente. Então, ele já me conhecia e sabia de tudo. Sabia que eu estava nessa luta. E a última vez que tive notícias ele estava prestando serviços administrativos no hospital da Polícia Militar. Continuava trabalhando, recebendo com o dinheiro que nós pagamos.
Ele tem muita certeza da impunidade, até porque meu filho não foi a primeira vítima dele. Lembro de ler numa reportagem que o soldado Alessandro Marcelino de Souza ia sentar no banco dos réus novamente. Que ele respondia por triplo homicídio, duas tentativas de homicídio e chegou a ficar um mês preso. Ele estava aqui em Manguinhos com muita certeza da impunidade, que ele tinha essa força e poderia matar quem ele quisesse, ou exercer vários tipos de violações contra a vida das pessoas que nada ia acontecer com ele. Só que dessa vez ele mexeu com meu filho e, enquanto eu respirar, vou correr atrás dessa justiça, dessa verdade”.
Agência Brasil: Esse tipo de violência e de abuso policial sempre fizeram parte do cotidiano de quem vive em Manguinhos? Como foi crescer na favela e cuidar de dois com essas preocupações de segurança?
Ana Paula Oliveira: “Infelizmente, a gente que mora em favela cresce vendo a violência do Estado. Isso sempre foi muito presente na minha vida. Se por um lado, o Estado não é presente para manter uma escola de qualidade, uma infraestrutura, moradia, educação e saúde, por outro, esse mesmo Estado investe muito aa dita segurança pública, entre aspas. Faz crescer a presença da polícia, que bate nas pessoas pelo fato de estarem fumando um cigarro de maconha, por exemplo. Essa sempre foi a minha realidade. Cresci com medo da polícia. Mas também vendo as ruas com esgoto a céu aberto, sem ter uma área de lazer para as crianças.
A gente vê acontecendo com os outros, com os vizinhos, pessoas conhecidas, e a gente fica sempre naquela apreensão. Tanto é que assim, quando o Jonatha entrou na fase de adolescência, eu cumpria o mesmo ritual que a minha mãe fazia comigo. Perguntava se estava com a identidade ou a carteirinha da escola. É assim a criação dos filhos que nascem e crescem nas favelas. São sempre orientados a ter algo que identifique e ou que comprove que eles estudam ou trabalham. É uma preocupação que uma mãe que mora na Zona Sul do Rio de Janeiro, em um condomínio, com outro padrão de vida, não vai precisar ter. De que se o filho não estuda ou não trabalha vai virar um alvo da polícia.”
Agência Brasil: Como a sua outra filha foi impactada pela perda do irmão?
Ana Paula Oliveira: “Ela está hoje com 18 anos e, na época que aconteceu, tinha apenas 8 anos. Apesar da diferença de idade entre os dois, eles eram muito apegados, tinham uma relação afetiva muito forte. Para mim foi muito difícil. Eu não sabia nem como lidar com a dor que eu estava sentindo, quanto mais com a dor da minha filha. E, infelizmente, as escolas e outros espaços públicos também não estão preparados para lidar com isso. Quando eu levava minha filha para escola, ela se agarrava no portão da escola chorando, dizia que não queria entrar e que queria ficar comigo. E eu também chorando ali. Eu conseguia com ajuda das pessoas da escola que ela se acalmasse e entrasse na escola. Mas eu mal chegava em casa, o telefone tocava. Era direção da escola, solicitando que eu voltasse lá para pegar minha filha. Alegavam que ela estava prejudicando a aula, que atrapalhava a professora. Porque a professora queria dar andamento às aulas e ela começava a chorar do nada. As crianças que eram da mesma idade dela que se levantavam e ficavam todos ao redor dela ali, acolhendo e tentando acalmá-la.
Com muita dificuldade, eu consegui um psicólogo particular para ela. O que era difícil, porque eu tinha que me locomover com ela durante a semana, tinha um valor para pagar e o transporte. Até hoje, nove anos depois, ela faz esse acompanhamento. E até hoje sai do meu bolso. Foi o Estado que provocou tudo isso na minha filha e na minha família. Esse mesmo Estado não nos apoia em nada, não assume as responsabilidades que deveria ter no cuidado com a nossa saúde. Foi difícil e continua difícil”.
Agência Brasil: Como foi esse processo de ressignificar o luto e criar o movimento Mães de Manguinhos, para ajudar outras pessoas em situações semelhantes?
Ana Paula Oliveira: “A luta foi o que deu sentido para a minha vida. Eu falo sempre que eu encontrei nessa busca pela justiça e pela verdade uma forma de continuar exercendo minha maternidade com o Jonatha. Uma forma de continuar cuidando dele. E eu vou cuidar até o fim. Mesmo quando terminar tudo isso e for cumprida a justiça do ponto de vista institucional, não vai ter acabado para mim. Porque ainda é preciso lutar por justiça para a mãe da Kathlen Romeu, do Thiago Flausino, e para tantas outras mães que tiveram os filhos arrancados. Não vão poder devolver nossos filhos, então a justiça nunca vai ser completa. Mas temos uma luta pela vida de quem ainda está aqui. Queremos que esse sistema de justiça mude. Os julgamentos só chegam porque mães como eu, que não tiveram direito ao luto, se jogam numa luta incansável, árdua e muito dolorosa para mostrar a verdade dos fatos.
E uma das nossas lutas nesses 10 anos é por uma perícia independente. O que agora conseguimos agora no caso do Jonatha. Como que a própria polícia vai investigar a polícia? A gente sabe muito bem que eles se acobertam. Então, não tem como a gente acreditar que vai acontecer uma justiça com essas coisas. Por mais que tentem fazer com que a gente acredite que não vai dar em nada, seguimos lutando. Eu ouvi muito isso, de ‘deixa para lá, não vai dar em nada’.
Nesses 10 anos, eu vi várias mães que estavam na luta comigo em busca dessa justiça pelos filhos, em busca de exaltar memória dos seus filhos, adoecer e morrer. Sempre peço a Deus que me dê saúde e proteção para que eu veja isso acontecer. Eu quero ver isso acontecer e quero que outras mães se inspirem e acreditem que a gente pode fazer com que a justiça realmente apareça”.
No processo de luta do Mães de Manguinhos, a gente começou a entender a necessidade de também ajudar na formação política das pessoas. Muitas vezes elas são vítimas de violências e violações do Estado, mas não entendem isso. Casos de bala perdida, mortes em presídios. E a gente passa a explicar que o filho delas estava sobre a tutela do Estado, que existe uma responsabilidade, que não houve atendimento de saúde dentro do sistema prisional.
Eu me formei em pedagogia e não aprendi nada disso na universidade. Eu fui aprendendo no dia a dia, ouvindo outras mães e muitos companheiros apoiadores de lugares que eu era convidada para participar de palestras, com acadêmicos e outras entidades sociais. E a gente vai adquirindo um conhecimento que não podia ficar restrito a gente. Precisávamos levar para a favela. Também assim como levar o conhecimento da favela para fora.
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